Uma goiaba, por favor. Com bicho, é claro

Francisco Malagutti


Peru molhadinho, bem assado (responsabilidade daquele termômetro mágico, o guardião de cada nível de maciez), até uns pedaços de tender ali no jeito, com aquela calda de laranja não tão doce que é para bater direito com o arroz empapado, receita clássica que a avó trazia e ela amava, farofa cheia de uva passa (credo, por que diabos fazem isso?) e uns nacos de pêssego (pior ainda, até uma pequena e peremptória ânsia que acomete o fundo da garganta), maionese (um descalabro com os russos de outrora)
com maçã, panetone (é o que tinha) e pavê (que até dava para servir) na mesa: a ceia, (dis)posta, com antecedência de alguns minutos, não precisa mesmo estar quente, tinha até umas luzes de bom gosto, branquinholas, uns papai noéis modernosos e até, ora, vejam só, quem diria que ela iria se lembrar (dada a questionamentos históricos que era, mas que já foi um pouco mais) um presépio de plástico daqueles baratecos, um e noventa e nove (hoje em dia, de três a cinco reais) de fundo para dar o ar de aniversário que a ocasião pede. Uma faixa inteira do pisca queimou bem quando começou:

— Oi, mãe! Tá dando para ver direitinho aí?
— Ô, filhota, tô escutando mas tá tudo preto. Onde aperta?
— A câmera tá fechada, mãe. Puxa a travinha pro lado.
— Como que faz?
— Pro lado.
Gilberto pede para entrar. Giba é o mais velh(ac)o dos três. Chato que dói e que só ele consegue ser. O sabe tudo, bonzãozão, cheio de arrumar briga por nada só para ganhar discussão. Pela saco.
— Opa, e aí, galera, beleza? Ju, cadê a mãe?
— Tá tentando aparecer na tela, mas tá aqui. A trava tá fechada.
— Tô te ouvindo, Giba. A Manuzinha tá aqui querendo mexer nas tecla.
— Não deixa que é novo! Vai quebrar e eu não vou dar outro, não!
Pela saco.
— Vocês fizeram a comida, como a gente combinou? (ficando um pouco inquieta, impaciente, vamo fazer logo o que já tava combinado, saco, mais cedo tava conversando com um cara no Tinder e bem que podia rolar mais tarde, tem ninguém hoje no apê, tô precisada)
— A Manuzinha e eu tamo com tudo aqui feito. Ficou lindo, ó! Tá super cheiroso, vocês deviam tá aqui.
— Mãe, tô atolado, já disse.
— Mãe, a gente precisa se proteger. É só por isso, a gente queria muito tá aí com você hoje, viu?!
— Eu sei, mas é tudo exagerado isso aí, você sabe. Exagero. Eu vi hoje mais cedo um vídeo no Zap que a Carme mandou, que fala certinho como que faz para matar essa porcaria aí.
— Mãe, é fake, vai por mim. Trabalho com isso aí. Não cai nessas, não. (sem saco para falar, porque gosta de mostrar que sabe bem mais, mas na verdade, só não tem muitos dados também)
— Pô, galera, mas essa conversa agora? Gibo, deixa ela, não dá pra falar com ela sobre isso.
— Não dá o que? Eu tô falando que isso aí é exagerado, só isso. Tudo politicagem.
— Mãe, vamo brindá? Comemorar que tá tudo bem, que foi um ano que deu pra gente passar? Teve gente que não teve essa sorte, né.
— Passar bem como? A gente tá trancado em casa desde março, teu pai perdeu um monte de cliente bom e a gente mal tá conseguindo pagar os empregado na casa. Tive que mandar duas embora ainda ontem. Quase que eu tive que sair para fazer compra hoje, daí cê ia ver tua mãe na rua. Sem contar que esse ano, essas porcariada desses político resolveu que não precisa nem ter Natal e não fez um nada de decoração na cidade. Colocaram umas luzes nas árvores aqui na praça em frente do prédio e só. Nem teve casa do Papai Noel esse ano pra gente tirar foto. Que coisa triste, senhor da glória.
— Mãe, pelo menos a senhora tá aí com a Manu, vivinha da Silva.
— Falando nisso, cê ficou sabendo que o porteiro aqui, o Silva, morreu? Mas não foi corona, não. Parece que foi insuficiência respiratória, só.


Longe dali, um pouco mais para o cima no tal do mapa.
— Mãe! Voltou a luz! Pode tomar banho?!
— Leva as menina. Depois eu dou nos moleque. Anda rápido que logo cai de novo!

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