Ela é

Chico Malagutti

Quando observei seu movimento se enternecer, se ampliar, eu soube que existia algo de diferente, amoleci. À primeira vista, me lembrou o quentume de um primeiro amor, aquele de descoberta e cavucada, cheio de lampejos e desejos e segredos. Soluços e solavancos precipitação e antecipação.

Precipício. Nada que é racional se mantém duro ou coerente durante tempo suficiente. A ideia era e sempre foi o nunca: nem olhar e nem passar perto de nada disso. E, mesmo assim, quando a porta (dupla) se abriu, a
viração aconteceu. Nem um mês e já estava tudo muito mais que bem encaminhado. E o frescor só aumentou. Como se as paredes caíssem e o mundo finalmente aparecesse, eloquente e opressor, magno, rápido, nítido.

O brilho, a reflexão (de tudo) na íris. Todo o pensamento mudou de cor. A importância e a desimportância de cada sentimento ou problema (por mais) dolorido (que fosse) afrouxou na escala. E a música mudou seu tom. Porque, quando espiei novamente, quando o vento passou sua próxima passada e a última folha caiu pesada, para ir embora, numa descarga insensata, de todos os caminhos que nunca aconteceram, o que sobrou foi a insistência da permanência. A dureza. O silêncio de um respeito vidrado.

A dor que espera quieta, formigando os dedos sem pontas, sem toque, sem sentido, sem sonho. Nada pode suprir (nem suprimir) o terror que é o quase. E assim os dias aconteceram (três dias desperdiçados em essência, setenta e duas horas do mundo se fechando em um quarto escuro de nãos). Mas a decisão de não se entregar foi dela. De não abandonar, de não se esquecer. As mãos sustentaram fortes e inventaram suas promessas.

O que aconteceu a seguir foi o instinto em nascimento, sobrevivente. Ela foi, mais do que qualquer pessoa terá sido ou será. Fomos. Somos. E por ser som e memória e coragem, é existência. A delícia de se ser o que se é sem precisar explicar as consequências para mais ninguém. Sem contaminar a compreensão com desculpas esfarrapadas. Ou ouvir os consolos de deuses mesquinhos e desorientados. Ela sabe. Eu sei.
Ela é. Ela vive.

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