De janeiro a junho deste ano, 1.124 brasileiros em todo o país retificaram seus nomes e, em simultâneo, o gênero em Cartório de Registro Civil, segundo levantamento da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen).
Desde a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018, que reconheceu o direito de transexuais adequarem sua identidade de gênero e nome sem necessidade da cirurgia de redesignação sexual, nunca foram feitas tantas solicitações em um só semestre.
O número deste ano supera em 44% o registrado entre janeiro e junho do ano passado, que foi 782. Também supera o do primeiro semestre de 2020, de 636, e o do mesmo período em 2019, com 937 retificações. A quantidade de solicitações poderia ser ainda maior, mas nem todas as pessoas se sentem confortáveis para realizar as mudanças.
Regulamentada pelo Provimento nº 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a decisão prevê a possibilidade de alteração de nome e gênero sem necessidade de cirurgia de mudança de sexo e de autorização judicial, permitindo a realização do ato diretamente nos Cartórios de Registro Civil de todo o País, em procedimento que pode ser efetuado até no mesmo dia.
De acordo com o STF, o transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não exigindo nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer o pedido tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa.
Como é o processo
Para fazer a alteração de gênero em nome nos Cartórios de Registro Civil é necessário a apresentação de todos os documentos pessoais, comprovante de endereço e as certidões dos distribuidores cíveis, criminais estaduais e federais do local de residência dos últimos cinco anos, bem como das certidões de execução criminal estadual e federal, dos Tabelionatos de Protesto e da Justiça do Trabalho. Na sequência, o oficial de registro deve realizar uma entrevista com o(a) interessado(a).
Eventuais apontamentos nas certidões não impedem a realização do ato, cabendo ao Cartório de Registro Civil comunicar o órgão competente sobre a mudança de nome e sexo, assim como aos demais órgãos de identificação sobre a alteração realizada no registro de nascimento. A emissão dos demais documentos deve ser solicitada pelo(a) interessado(a) diretamente ao órgão. Não há necessidade de apresentação de laudos médicos e nem é preciso passar por avaliação de médico ou psicólogo.
em Vargem
De acordo com Maísa Del Valle, Oficiala de Registro do Cartório de Registro Civil Vargem Grande do Sul, após a decisão do STF e a alteração normativa, que simplificou o procedimento, foram realizados três procedimentos de alteração de nome e gênero no local. Conforme ressaltou, o baixo número na cidade talvez revele um desconhecimento da população quanto a dita simplificação.
Ela falou sobre o processo de mudança, que hoje é todo realizado apenas e diretamente no cartório. “Antigamente, somente se permitia a alteração daqueles que tivessem se submetido a cirurgia de transgenitalização e demandava autorização judicial. Isso foi superado, a partir da concepção de que a transexualidade não se relaciona à questão morfológica e corporal, mas sim, quanto a uma identidade autopercebida, a forma como você se identifica na sociedade”, disse.
“Então, independentemente de cirurgia, tratamento hormonal etc, basta que a pessoa, maior de 18 anos, compareça pessoalmente ao cartório, se autodeclare de gênero diverso e apresente um conjunto de documentos (basicamente documentos pessoais e certidões de distribuição da justiça e de protesto), que o procedimento é realizado a um custo de R$ 166,68”, completou.
Maísa relembrou que este é um procedimento sigiloso, onde não será dada informação sobre a alteração e todos os colaboradores do Cartório são preparados e orientados para tratar qualquer solicitante de forma respeitosa, sem qualquer preconceito. “O caso só é enviado ao juiz, se suspeitada alguma tentativa de fraude. O interessado pode pedir a alteração do nome ou do gênero, ou de ambos, o que melhor se adeque a sua identidade autopercebida. Mesmo que o registro não seja desta cidade, conseguimos através do sistema nacional remeter a qualquer cartório do país, com custos aplicáveis”, informou.
A Oficiala comentou que há procura frequente no local de pessoas tentando fazer a mudança e falou sobre as principais dificuldades que encontram ao procurar o Cartório. “Acredito que o desconhecimento quanto ao procedimento ou insegurança, quanto ao tratamento, o que deve ser tranquilizado. É importante lembrar as pessoas que o Cartório é um Ofício da Cidadania, nossa função é justamente assegurar direitos e dignidade às pessoas”, pontuou.
O tempo, felizmente, é pequeno. Segundo Maísa, em no máximo 15 dias a pessoa já estará em posse da certidão alterada. “Em seguida, a pessoa providencia a alteração dos documentos pessoais e nós também temos serviço de correção do CPF”, informou.
Com a mudança de nome, Bernardo se sentiu livre
Bernardo Souza Azevedo, de 23 anos, fez a mudança de nome em 2020. À Gazeta de Vargem Grande, ele relatou detalhes do processo e contou que o incômodo foi a sua principal motivação. “Antes de mudar no documento, eu já tinha mudado nas minhas redes sociais, já havia explicado para o pessoal que agora não era mais Bianca, que eu me identificava como trans e que agora era Bernardo”, explicou.
Para ele, o processo da mudança foi bem complexo. “Cheguei com toda a documentação aqui e não deu certo por eu não ter nascido aqui e sim em São Paulo”, comentou. Na época, ele trabalhava em uma loja de materiais de construção e a afilhada e sobrinha da sua patroa, que é advogada, se ofereceu para ajudá-lo. “Ela perguntou se eu tinha conseguido mudar e eu falei que não por não ter nascido aqui. Contei que eu ia ter que ir pra São Paulo para isso e que no meio de uma pandemia eu não ia conseguir ir para lá, teria que esperar passar para poder ir”, completou.
A advogada, então, entrou em contato com o cartório que Bernardo foi registrado em São Paulo e conseguiu que ele fizesse a alteração no Cartório Civil de Vargem. “Com o diálogo dela com o cartório de lá e o daqui eu consegui mudar. Foi graças a ela, se dependesse da minha parte, eu não iria conseguir por não ter o contato que ela teve”, observou.
Bernardo não lembra quanto tempo durou todo o processo, mas destacou que a parte difícil foi a burocracia dos documentos. “Se não me engano, para chegar a certidão foi em torno de uns 20 dias a um mês, mas todo o processo demorou um pouquinho mais, uns dois ou três meses”, contou.
Ele pontuou a importância da mudança do nome na sua vida. “É enorme, pois tem muita gente ignorante, ainda mais onde a gente vive, no interior, uma cidade pequena. Eu trabalhava de vendedor em uma casa de material de construção, onde todos me conheciam. Então foi uma fase muito difícil, principalmente para o pessoal, para os meus patrões, que chegaram em mim e perguntaram como eu queria ser chamado, se era Bianca ou Bernardo, porque os dois não dava, então me chamariam como eu preferisse. Eles me apoiaram”, relembrou.
Preconceito
“É importante por conta disso, até com cliente, eu sabia qual cliente que tinha me ligado. Tinha um cliente que nunca me chamou de Bernardo, sempre me chamou de Bianca. Ele dizia que eu tinha que mostrar o documento pra ele ver e teve um dia que eu troquei minha certidão e toda a minha documentação, RG, CPF e tudo mais, e mostrei meu RG na cara dele e mesmo assim, ele não chamava pelo meu nome”, completou.
Apesar desse episódio, com a mudança, Bernardo se sentiu muito melhor. “Eu fiquei em dúvida entre dois nomes, era Heitor e Bernardo, eu tentei me adaptar a Heitor, mas eu não gostei, e então optei por Bernardo já que eu me chamava Bianca, é a mesma letra e minha família me chamava de Bi, então pra me chamar de Be é mais fácil”, disse.
“É muito importante pra gente, assim como o nome é importante também para a pessoa saber o que ela fala, tem muita gente que fala com a gente no feminino, respeita meu nome ser Bernardo, mas fala no feminino. Meus pais, por exemplo, ainda estão em fase de adaptação, dizem coisas como ‘minha filha’. O pronome é muito importante em relação a isso, porque não adianta a pessoa respeitar o seu nome e te chamar pelo seu nome correto, mas não respeitar o pronome”, argumentou.
O jovem deu uma dica a quem ainda não mudou o nome e precisa mudar. “Procure um advogado que nem sempre a gente consegue mudar sozinho, especialmente se você não nasceu na cidade onde mora. É que tem muita documentação que você não vai saber mexer, um milhão de certidões que eu nem sabia que existiam, então complexo”, pontuou.
“O advogado já está dentro disso, então faz mais rápido, vai gastar um pouquinho de dinheiro a mais, mas é uma coisa importante para você. Então não é gasto, é um investimento. Se não fosse pela minha advogada eu ia ter que esperar para poder ir para São Paulo para mudar”, disse.
Cada conquista deve ser celebrada
Para ele, o aumento do número de pessoas que estão conseguindo essa mudança é algo positivo. “A sociedade, querendo ou não, é machista, então já é difícil para a gente. Para mim, que sou um homem trans, que era uma mulher e passei a ser um homem, ainda é um pouco mais tranquilo, agora para as mulheres trans, um homem que se identifica como mulher, a falta de respeito é absurda. Tem muita gente que confunde gênero com sexualidade e são duas coisas totalmente diferentes, então é muito importante a gente comemorar cada conquista”, ressaltou.
Bernardo comentou que ser respeitado é muito difícil e que já ouviu muitos comentários de pessoas dizendo que ele já ficava com mulher e não precisava ter “virado homem”. “Sexualidade é o que você tem atração e gênero é o que você se identifica e muitas pessoas ainda não entendem isso. Eu sou hétero e gosto de mulheres, mas se eu fosse trans gay, iam pesar na minha mente, falar um monte de besteira de que quando eu era mulher eu ficava com mulher e agora que sou homem fico com homem”, disse.
“Se estamos conseguindo pequenas conquistas dentro da lei, que é algo difícil, sempre comemoramos por menor que seja, sempre é algo muito bom. Para a pessoa de fora parece que é algo diferente, mas para nós é algo extraordinário”, completou.
O jovem ressaltou que as pessoas precisam aprender a respeitar a vida do próximo. “Nós vivemos em um mundo onde matar uma pessoa é comum, mas ver um casal de homens beijando é anormal. Mas eu vejo que gays e as mulheres trans sofrem muito mais preconceito com isso, porque a sociedade é machista e quando as pessoas veem duas mulheres se beijando acham lindo, queria estar no meio, mas se dois homens se beijam acham ridículo”, observou.
Para ele, isso é muito sofrido, ainda mais morando no interior onde todos se conhecem. “A cidade onde moramos é minúscula, todo mundo conhece todo mundo e cuida da vida de todo mundo. Muitas pessoas me falam até hoje que eu tive muita coragem de assumir o que eu sou, de mostrar o que sou sem esconder de ninguém, por que vivemos em uma cidade onde todo mundo cuida da vida de todo mundo e eu nunca me importei de falarem da minha vida, eu nunca vou deixar de viver e de ser quem eu sou por conta do que falam ou deixam de falar, Meu pai é mototaxista na cidade, ele é extremamente conhecido e nem por isso eu deixei de ser quem eu sou”, afirmou.
Ela contou como foi se assumir para a sua família. “Primeira vez que eu me assumi eu me assumi bissexual, eu não me assumi trans. Eu me assumi bissexual para os meus pais e logo depois de um ano eu namorei uma menina e depois que eu namorei essa menina eu tive certeza, que gostava apenas de mulheres. A partir da sexualidade, eu tive certeza absoluta que não gostava de me relacionar com homens”, recordou.
Mudança
A transição física teve início aos poucos. “A transição eu fui fazendo e minha mãe não acreditava, eu falei que ia cortar o cabelo, ela não acreditou e eu cortei o cabelo, eu falei que ia mudar o nome, ela não acreditou e eu mudei meu nome, falei que ia começar a transição hormonal e comecei ela não acreditava, então ela só foi vendo acontecer”, relembrou.
“Eu tô em dois anos e meio de transição hormonal e eu cortei meu cabelo em 2018. Eu demorei um ano para cortar o cabelo pelo simples fato de eu ter certeza do que eu era. Você ser lésbica e você ser trans é totalmente diferente, no dia que eu cortei, eu me senti liberto, não tem como explicar. Sabe quando você nasceu para ser aquilo e estava tentando ser uma pessoa que não era?”, contou.
O jovem comentou que o trans sofre em todos os sentidos, pois para um homem sis (que se identifica com o gênero de nascimento) o trans nunca será aceito como um homem, justamente por ser trans. “Então para eles, não são todos logicamente, mas há bastante na sociedade, que dizem que para ser homem tem que ter o que o homem tem. Existe muito preconceito por conta disso”, disse.
Com o preconceito e julgamento, os traumas também se fazem presente. “Quando era menina eu sempre falei para os meus amigos que eles não saiam e ficavam com bastante menina porque tinham medo de levar fora e eu nunca tive medo de levar fora, eu sempre chegava nas meninas”, comentou.
“Depois da transição, bem no começo a menina me conhecia, mas eu não a conhecia. Eu cheguei nela, e ela disse que não ia ficar comigo por que eu era menina e eu já não era mais menina, já era o Bernando eu só não estava no auge da minha transição igual hoje, que tenho barba e rosto mais masculino. E aquilo me traumatizou de uma maneira que até hoje eu não consigo mais chegar nas meninas. É um bloqueio que eu tenho e que eu faço terapia para tentar tirar isso, o defeito não tá em mim, o defeito tá na pessoa”, finalizou.